orelha


contrariamente à leitura de certa crítica mal-humorada, a poesia brasileira contemporânea não virou a cara ao seu tempo nem à política nem, consequentemente, à vida. mesmo antes da antologia vinagre, organizada por fabiano calixto e eduardo sterzi, tal imediaticidade entre poesia, vida e política era exatamente o ponto pelo qual se passava (e continua se passando) uma das forças maiores da época em que vivemos. é nessa encruzilhada que se coloca explicitamente “cheguei atrasado no campeonato de suicídio”, a “obra incompleta” de andré monteiro, fazendo-nos ver que não é a poesia que, retardatária em relação ao seu tempo, teria de correr atrás dele e da política hoje atuante, mas, antes, que é o modo político vigente que tem a necessidade de se colocar à altura da articulação que com ele e com a vida a poesia realiza.

o primeiro poema da reunião, colocado ali para dizer a que o livro vem, intitula-se “como fazer (ou não) um poema profundamente político?”. tal oscilação entre a aparente receita e sua negação, indiscernibilizando-as, retorna ao longo do poema de diversos modos. se o poema político necessita das negações e das afirmações que ele realiza, é para se manter no lugar do paradoxo, que não o leva a uma luta para determinar o sentido último da política (ou da vida), mas coloca a política no lugar do nascimento constante da possibilidade dos sentidos que jamais estão prontos ou definidos. é a abertura em que se coloca um pré-sentido, um ainda não sentido, um sentido sempre por se fazer na luta – político-poética – pela garantia da abertura, que forma então a necessidade do poema, que se preserva no intervalo entre um já não nada e um ainda não alguma coisa: “um poema profundamente político não se faz com temas públicos/ mas com temas impublicáveis” [...] um poema profundamente político não é um poema sobre a política/ mas com a política do que não tem política e nunca terá/ um poema profundamente político/ é quase-poema quase-política”.

essa compreensão do comunitário pelo impublicável, pelo não dito, pelo quase, pelo que não se consolida, pelo que não tem receita, pelo irrepresentável, leva andré monteiro a uma não estetização do poema, a lidar com ele, de maneira política e vitalista, pelo que nele falta, pela fome compartilhada em nome da qual o poema se faz. “cheguei atrasado no campeonato de suicídio” não fala sobre o outro nem para o outro, mas, ao modo das interjeições, os poemas falam mesmo é com o outro, em plena disponibilidade para o outro, em flerte com o outro, como se, no fundo, a política decisiva dessa poesia que aqui se oferece ao leitor fosse, como é dito e repetido pelos membros das mais diversas comunidades do brasil de hoje, garantir ao outro que “é nós”, “tamo junto”.

em vários níveis, é o nós no lugar do eu, o junto no lugar do separado, o inclusivo no lugar do exclusivo, o coletivo no lugar do individual, o povo ou a multidão no lugar de um só rosto, o público no lugar do privado, o que se passa, enfim, entre nós, que no livro se coloca em abertura para a fúria de uma reinvenção constante dos mais diversos modos de vida que possam assumir radicalmente o outro como, desde sempre, constitutivo de cada um de nós. ou como diz “um pan-flerte é o que é”:  “não é por mim/ não é por você/ não é pela maioria/ não é pela minoria/ é pelo que em nós/ infinitamente é/ o que está por ser”.


alberto pucheu
poeta e professor de literatura da ufrj