segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Cheguei atrasado no campeonato de suicídio ou “o cheiro da bebida e o barulho da festa”

A escrita de André Monteiro, em Cheguei atrasado no campeonato de suicídio, exala um cheiro do diário, do ordinário. Nos cinco livros-movimentos que a compõem – Pan-flertes: escritos de esquina, Caderninho das tormentas, Ossos do ócio, Cheguei atrasado no campeonato de suicídio e Ao vivo, um aspecto chama à atenção de forma especial: o modo como sua composição poética anseia pela abertura, pela inconclusão de uma linguagem que se anuncia obra incompleta. Caderninho das tormentas, Ossos do ócio são livros comoventes, sem auras, nem rótulos, feitos de vento e frescor. São leves e levianos e que, assim como os demais, são cantos apaixonados ao amadorismo, à não-escrita da obra com “o” maiúsculo. Invade à cena a letra minúscula que quebra a coluna vertebral do jargão e oferece passagem ao verbo alucinado. Os poemas sem título de Cheguei atrasado no campeonato de suicídio desenham a atmosfera dessa escrita que só tem meio, fluxo, na qual se diz acerca do infinito que habita a palavra. A linguagem de André Monteiro cria uma tensão entre o tropeço e elementos que sugeririam a ideia de uma ordenação possível. A série de listas que elabora, ao invés de totalizar, de buscar a síntese, diz da impossibilidade de se dizer a palavra definitiva. Ao pensar as listagens presentes nas narrativas de Borges, Foucault observava como as listas borgeanas esmiuçavam-se nas especificidades, criando para cada exemplo de coisa no mundo uma categoria, que acabavam por ironizar a própria pretensão de ordem e catalogação imposta aos objetos. Poemas como “elogio da anáfora”, “como fazer (ou não) um poema profundamente político”, “pelo menos pelo mais”, de Pan-flertes: escritos de esquina, podem ser lidas como listas à maneira borgeana, alfabeto ao revés, que oferecem a antireceita; panfletos transviados, libertos que estão da palavra que designa e oferece a saída. O livro celebra uma atmosfera de coletividade que desloca o nome autoral e transforma a linguagem poética num lugar de ritual e trânsito. Muitos são os nomes a quem são dedicados os poemas ou que aparecem referidos neles. São textos escritos do e para o encontro, como o texto “passagem de som”, de Ao vivo, para serem lidos no bar e, se chegarmos bem perto deles, somos capazes de conseguir sentir o cheiro da bebida e o barulho da festa. Um livro que busca a alteridade na referência aos amigos, nas leituras devoradas e no leitor que se vê seduzido para o festim, para a festa da palavra. Trata do escrever, dessas (im)possibilidades da palavra, da tensão entre o dizer e o não-dizer. Ao vivo e Cheguei atrasado no campeonato de suicídio bebem o presente, num movimento simultâneo de voltar-se para a criação do novo, para o que está vivo, de matar os poetas-modelos-deuses que o tempo (leia-se uma crítica crivada de rotulações) tratou de inventar e de, também, saber que não se pode (e nem se quer) matar por completo aqueles autores que estão inscritos no afeto. Estes, no entanto, não são paráfrases de uma letra morta, mas a (ins)piração para a coragem de continuar a envenenar de paixão a linguagem. O que faz a sua obra ser incompleta não é o fato do autor estar vivo e de que outras obras podem vir a ser produzidas na sequência dos anos, mas é a carne viva de sua palavra. Nela vige a incompletude, o demônio do verbo, o movimento circular de uma obra que se autoquestiona, que arma as jogadas e se põe em xeque. Esse livro é um desejo de não chegar ao fim, é “escrito de circunstância” no qual aquele que escreve não se acha suficientemente instalado como em uma casa. Se a linguagem for morada, como dizia Adorno, ela é transitória como uma barraca, um hotel ou uma casa alugada. A escrita de André Monteiro é tecido de provisoriedades. Seu livro é matéria de devir e deriva.


Nívea de Assis
(escritora cearense)

terça-feira, 30 de setembro de 2014

Tomando “Cheguei atrasado no campeonato de suicídio” aos goles

Sobre Cheguei atrasado no campeonato de suicídio, após vê-lo, em devir, entre as frestas das redes sociais, chegou-me às mãos no dia 31/05/2014 como presente do querido autor. Lindo! Foi o que exclamei repedidas vezes enquanto admirava a belíssima fotografia de capa, observando orelhas e dedicatórias. O calor vivo do corpo do livro, das páginas, a dança das palavras a se disporem e ocuparem e territorializarem os espaços, rompendo, infiltrando. Seria preciso aguardar os momentos de solidão em que o saborearia sozinho.

Primeiro fui à página 164. Depois, à página 170. As conexões aprofundaram-se, a observação de tantos nomes conhecidos trouxe, para mim, sabor de festa ao primeiro contato. Como sabemos, em um rizoma insaturável, como nessa obra, são muitas as portas de entrada. E a opção “por onde entrar” também modifica as conexões, o mapa do rizoma. Voltemos então ao princípio: é pelas esquinas, brechas e curvas que encontro amigos, conhecidos e antigos desconhecidos – encontros – como em uma festa aparecem em afetuosas dedicatórias ao desfolhar as páginas de “cheguei atrasado”. O belo encontro das forças. O “irrepresentável que se apresenta.”

Mas nem tudo são festas pelas frestas. Feridas doídas, adormecidas, marcas de cicatriz, quando são reconhecidas pelos olhos dos amigos é que, de alguma forma, também neles se põem a doer. E a dor é aguda e profunda: é vida!

Não é livro de um só fôlego, mas para ser tomado aos goles (já na página 106).

Um livro que não se cansa, do qual não se cansa. Com muitas esquinas, encontros, rupturas e aberturas. Um livro que exige paradas para pensar. Como um vírus, vai ocultando-se em organismo alheio, modificando-o sutilmente, afetando e interagindo com suas enzimas. É preciso se conter, pois a cada linha sentimo-nos atrasados para a próxima. Estamos constantemente em atraso em relação à leitura e releitura e ao repensar de “cheguei atrasado no campeonato de suicídio”. Mas a literatura dá um passo à frente. Como bem diz o poeta, “chegar atrasado é chegar sempre na hora certa de dobrar nosso depois” (p. 127).

(Estou atrasado, certamente, não só com o postar destas linhas, como também com a próxima releitura).

Sávio Damato
(escritor e mestre em Estudos Literários pela UFJF)

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Suicídio a dois

É impossível fugir da palavra. Ela fala sem que se fale dela. Quando se tenta sem êxito falar nela ou falar-se através dela.. só se permite que ela se cale. Apenas quando se deixa deixar o todo da palavra viver na vida... e enfim ela te suicidar (antes a você suicidá-la.)... se pode anunciar que a palavra vem aí! E pronunciá-la em alto e bom som, pra que ela viva sem você.. mas se relacione COM você ..em todos os seus descontornos... vociferar a verve viva de uma palavra rara. A raridade da palavra não se cria pela criação incomum de alguma palavra inventadinha. A raridade da palavra se cria pela cria da palavra. Não sua. Nunca se propõe uma palavra. A palavra não se põe, nem se impõe à serviço. E ainda sim... é impossível fugir da palavra. Mesmo quando sendo a palavra coisa alguma... ainda sim é alguma coisa viva. Nenhuma palavra é nada, mas o algo da palavra... não é nada demais. Mas em um papel em branco todo algo é tudo. Aí a mania dos poetas de fazer poemas. Vem criar sua cria e a palavra se transfigura num criado. e mata-se o seu criar. Me avisem se achá-lo em alguma fresta dessa festa de letras frustadas, mas não creio. Chamam-me poeta, porque faço poema. É o poeta o que mais do que um sabedor de palavras? Quem não sabe das palavras que me diga! Eu só mendigo letras, que nem são letradas nem nada, e tento furá-las com a minha caneta, mas não dá. Só furo símbolos, suas possibilidades continuam possíveis e passíveis de ser alguma coisa sua. Não posso reivindicar minha autoria se nem sequer fiz poesia mais do que um vômito de coisas velhas que tirariam nota zero na prova de literatura da escola. O dono que se dane!! Eu sou aqui e ali aquele 

alguém
capaz de arrancar
aquela gargalhada mortal
não dos que debocham
mas dos que simplesmente
descobrem arrepiados
que estão vivos ".
Que palavras falam mais do que as que eu nunca poderia
mesmo que quisesse
dizer qualquer coisa
de alguma coisa sua.
Não digo sobre você
falo com você. Você
Você... que é um eu dos teus muitos nossos
nossos muitos meus são dele, ele sou nós daqueles muitos vocês. 

Em tempos - entre tropeços e gargalhadas, a gente vai rindo e tropeçando.

Ler o livro-janela Cheguei atrasado no campeonato de suicídio  é o mesmo que acontecer. É estar aberto a rachadura viral da vida que te consome e se consuma a todo instante que some e assume formas de escapar pelas beiradas da palavra. Não há o livro, há janela! Nos oferecendo a possibilidade de saltar. Mas "para saltar é necessário esquecer as possibilidades do salto e viver seus impossíveis". Saltar é suicidar-nos para ser - dentro do livro - um outro. Falem o que quiserem os críticos literários, André Monteiro não escreve em verso. André Monteiro escreve inverso, explode e afeta o que ainda não tem palavra. Monstruosidades vivas borbulhando e expelindo suas entranhas mais estranhas de tortuosidade tuas... e afirmando para todos os ouvidos e sensações: ESTOU VIVA!

Abraço a todos! Com a alegria dos que não sabem e descobrem!


Lucas Zylber
(poeta e estudante de filosofia da UNB)

sábado, 20 de setembro de 2014

Um poema breuluzente

A vida besta não basta
pra bosta que é tão vasta
O pé empurra o chão
ou afunda o pedal
tentando acelerar o caos,
rachar o solo,
virar e revirar a base
O corpo é uma estação,
qualquer parada nele
é sempre com o piscalertaceso
e já pronto pra vazar

O transe é óbvio,
a transa nem sempre
Tudo transborda quando ferve,
basta fagulhar
Tudo chacoalha quando toca,
na pausa ou no ruído

Convulso em plena valsa!

Na casca do ovo não cabe flagelo,
a carne é fraca –
forte não é pra ser
nem pra estar
Na cápsula do outro a seiva
é o fim da sede
Tem sempre uma dádiva pra assanhar
a dúvida,
nunca sanar.

A alma do negócio não é o negócio
da alma
O espírito da coisa não tem nada
a ver com a coisa do espírito
Despacha a certeza
e se lambuza de dilema, André!
Rola e rebola nessa lama,
mas não se abale
Ou abale!

A morte é curta,
longa é a vida
Plena?
Nenhuma delas
Por isso é fagulha
é fogo
é foda
é gozo
é porrada
é porre
é pilha
É lume e é breu!

Vai, André!
Mata a pau a porra toda!
E salve-se quem foder!



Julio Satyro é poeta e sociólogo.

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Carta aberta a André Monteiro, escritor de “Cheguei atrasado no campeonato de suicídio”.

Caro André, 

Você “tava” nos devendo essa obra, completa na sua incompletude, doravante habitante da nossa mesinha de cabeceira, aberta ou fechada, mas sempre falante, ainda que silente.

Obra poética em prosa e verso, não a conseguimos ir devorando, porque não somos nós que navegamos, quem nos navega é o mar. Obra que dá secura na garganta, e não queremos ler em silêncio nem em voz alta, mas queremos ler falando, falando de múltiplos ais que ela, suas múltiplas e inconsoláveis palavras-lavas, nos obrigam a exclamar.

Obra que pinta o sete, sete mares, Sete-estrelo do escorpião, sete cores do arco-íris, sete ventos-furacões que arrancam a rosa dos ventos e diz: Chega! Chega de “nortes”, prescrições, orientações, mapas e setas de direção, verdades eternas, crenças redentoras! Chega de ver prá lá do ver, do acontecer, do futuro merecer! Tudo é agora, neste Grande Acontecimento num vasto território aberto à vida.

Obra política, o verso vem feito faca, em múltiplas estocadas, (re)incidente, renitente, insistente, repetidamente, porque não se mata uma “doxa” com uma só facada.

Obra nua e crua, a céu aberto, despregada de um único Sol, um único senhor, esperando Godot nenhum, mas tudo querendo, tudo amando, tudo desejando na pluralidade dos “aconteceres impossíveis”, gozosos e dolosos.

Obra arrasa-quarteirões, querendo desorganizar os “quadrados”, “indisciplinar as disciplinas”, como você sempre nos diz, para arrancar de nós essas fardas vistosas, dentro das quais vamos sendo, desde cedo, comedidamente embalsamados.

Poética-Saci (duas pernas atrapalham a correr) cheia de travessuras, lúdica nos dribles, invertendo itinerários canônicos, divertindo-se com nossa operosidade artesanal, subvertendo nossas receitas de bolo, exorcizando o messianismo onde nos metemos grávidos de transcendência.

Enfim, obra potente, não na “grandeza epilética” do alvoroço, do estabanamento, mas na sutileza “molecular”,  partículas e não ondas, colidindo no campo de jogo limpo, metáforas possíveis, carne viva. Uma gota de ouro que cai numa poça de lama, explodindo num assombroso particulado de multissóis-girassóis. Nem reforma, nem revolução, nem rebelião, mas a divertida convicção de que: “não existe nenhuma maneira / de sair daqui / então tá / azar”.

Chegar atrasado a esse pérfido campeonato, que nos obriga o cano ao ouvido, o silencioso estampido com que nos prega no peito os símbolos da decência, da obediência, da (falsa) clarividência. Suicidar o espírito, a liberdade, o desejo inquieto, tudo para liberar as mãos para os trabalhos forçados, liberar os bolsos para o supermercado, Super Mercado, liberar as mentes para sorver os néctares de um mundo que apodrece a olhos (cegos) vistos.

Chegar atrasado: perder o trem, a locomotiva do progresso, a última moda, a com-postura, marchar à ré, destoar, desengonçar a geringonça que nos abraça feito urso polar, friamente, mortalmente.

Arrisco-me a escolher um verso entre esses outros mil que nos açoitam:
 a vida é a própria arte e isso e tudo
Dizer: “Parabéns!’ será sempre pouco!


Luiz Almeida
(engenheiro e escritor)

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

Deco

Em um árido ser tão ávido ao des-recolhimento vomitório de palavras, encontrei na vida um meio-irmão de poesia e cara. Seu sotaque mineiro com resquícios nordestinos e o sabor ácido de suas passagens políticas & poéticas me dão segurança daquilo que mais temi em minha etílica juventude: gritar sozinho em uma cidade linda e fantasmagórica. Dizer com os pulmões abertos e o coração fechado que tudo está certo porque, justamente, se encontra errado. 

Nesse campeonato, que não tem sequer vencedores, creio que meu meio-irmão é uma espécie de perdedor ilustre. Perdeu o nó da vida logo antes mesmo de nascer, quando, como eu, não pôde acompanhar in loco o respiro de nosso querido e amado suicida Torquato. Inexplicável também é o amor de outro André que o acolheu como um pródigo e lhe deu suporte para ser Sidarta.  

E para todo aquele anjo torto que se encontra no desencontro, há sempre um plano Beta, beat, beato. E para esse pensar vigoroso da desistência e da coragem, da insistência em si e da covardia, queria apenas que esse médium da revolução pudesse ser pensado, mesmo que de canto de olho, em um PDF de tablete, ou numa linha de rede social, ou mesmo de ônibus público, ou interestadual.

Que a poesia que grita em prosa de Deco possa se espalhar pela alma daqueles que, desde sempre, dependeram da terceira margem para sobreviver ao desejo de vida. Que os que desejam pular, atirem-se na vida de suas palavras e regurgitem o pensamento de suas loucuras discretas e indiscretas. 
Que Deus o ilumina?!



João Paulo de Oliveira
(escritor e jornalista)

sábado, 2 de agosto de 2014

Poema para o André Monteiro: do céu ao inferno e vice-versa

Vale o risco
sequestrar a alegria no futuro
compor poemas em uma sintaxe estranha
animar os mortos
deixar a consciência onde a fonte nasce
porque tudo tudo tudo é pouco e fuga.

O outrora intacto
agora estilhaço
relacionamentos
retratos guardados
diárias perdidas
aquele disco do Lennon estourando a madrugada
e o som vazio das sirenes se aproximando.

Ainda na estrada
ainda desafiando os limites de velocidade
ainda esvaziando todas as garrafas
de qualquer lugar do fim do mundo.

Porque ela não volta.

O risco vale
inventar outro modo de viver neste mundo estressado
árduo, suado e intrigado.

A suprema felicidade é amar ao outro como a ti mesmo
ah, para alguns de nós

a promessa de cumprir o impossível não é obrigatória.


Anderson Pires
(Poeta e professor de literatura da UFJF)