Caro André,
Você “tava” nos
devendo essa obra, completa na sua incompletude, doravante habitante da nossa
mesinha de cabeceira, aberta ou fechada, mas sempre falante, ainda que silente.
Obra poética em prosa
e verso, não a conseguimos ir devorando, porque não somos nós que navegamos,
quem nos navega é o mar. Obra que dá secura na garganta, e não queremos ler em
silêncio nem em voz alta, mas queremos ler falando, falando de múltiplos ais
que ela, suas múltiplas e inconsoláveis palavras-lavas, nos obrigam a exclamar.
Obra que pinta o
sete, sete mares, Sete-estrelo do escorpião, sete cores do arco-íris, sete
ventos-furacões que arrancam a rosa dos ventos e diz: Chega! Chega de “nortes”,
prescrições, orientações, mapas e setas de direção, verdades eternas, crenças
redentoras! Chega de ver prá lá do ver, do acontecer, do futuro merecer! Tudo é
agora, neste Grande Acontecimento num vasto território aberto à vida.
Obra política, o
verso vem feito faca, em múltiplas estocadas, (re)incidente, renitente,
insistente, repetidamente, porque não se mata uma “doxa” com uma só facada.
Obra nua e crua, a
céu aberto, despregada de um único Sol, um único senhor, esperando Godot
nenhum, mas tudo querendo, tudo amando, tudo desejando na pluralidade dos “aconteceres
impossíveis”, gozosos e dolosos.
Obra
arrasa-quarteirões, querendo desorganizar os “quadrados”, “indisciplinar as disciplinas”,
como você sempre nos diz, para arrancar de nós essas fardas vistosas, dentro
das quais vamos sendo, desde cedo, comedidamente embalsamados.
Poética-Saci
(duas pernas atrapalham a correr) cheia de travessuras, lúdica nos dribles,
invertendo itinerários canônicos, divertindo-se com nossa operosidade
artesanal, subvertendo nossas receitas de bolo, exorcizando o messianismo onde
nos metemos grávidos de transcendência.
Enfim, obra potente,
não na “grandeza epilética” do alvoroço, do estabanamento, mas na sutileza
“molecular”, partículas e não ondas, colidindo no campo de jogo limpo, metáforas
possíveis, carne viva. Uma gota de ouro que cai numa poça de lama, explodindo
num assombroso particulado de multissóis-girassóis. Nem reforma, nem revolução,
nem rebelião, mas a divertida convicção de que: “não existe nenhuma maneira
/ de sair daqui / então tá / azar”.
Chegar atrasado a
esse pérfido campeonato, que nos obriga o cano ao ouvido,
o silencioso estampido com que nos prega no peito os símbolos da decência, da
obediência, da (falsa) clarividência. Suicidar o espírito, a liberdade, o
desejo inquieto, tudo para liberar as mãos para os trabalhos forçados, liberar
os bolsos para o supermercado, Super Mercado, liberar as mentes para sorver os
néctares de um mundo que apodrece a olhos (cegos) vistos.
Chegar atrasado:
perder o trem, a locomotiva do progresso, a última moda, a com-postura, marchar
à ré, destoar, desengonçar a geringonça que nos abraça feito urso polar,
friamente, mortalmente.
Arrisco-me a escolher
um verso entre esses outros mil que nos açoitam:
“a vida é a
própria arte e isso e tudo”
Dizer: “Parabéns!’
será sempre pouco!
Luiz Almeida
(engenheiro e escritor)
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